2017-5-22
A administração Trump põe fim ao princípio fundador da internet de igual tratamento de dados por parte dos ISP. Está aberta uma caixa de pandora onde tudo pode acontecer.
Previsível mas preocupante, a Administração Trump revoga as garantias legais de Net Neutrality do Presidente Barack Obama
Era conhecida desde a campanha à presidência de Donald Trump a sua vontade de controlar um meio no qual ele é pessoalmente um heavy user, nomeadamente com a sua conta de Twitter, mas que simultaneamente parece considerar de muitas formas um meio hostil.
A passada semana a FCC (Federal Communications Commission), o equivalente americano à nossa Anacom, iniciou um processo que reverte todas as anteriores garantias de igualdade sobre a origem dos dados na rede, especialmente o pacote legislativo de 2015 do Presidente Barack Obama, onde o princípio da Net Neutrality ganhou força de lei.
O republicano Ajit Pai, chairman da FCC é o grande arauto dos interesses das Telco face ao tratamento da largura de banda de cada provider. Quando a nova regulamentação for implementada, o modelo de negócio dos ISP será bem diferente, porque passam a existir dois tipos de receitas: a já existente por parte do pagamento dos utilizadores de serviço de dados, e uma nova por parte dos providers de conteúdos que não queiram ver os seus dados preteridos face aos serviços do próprio ISP. Apesar das declarações de ISP americanos como a Comcast, a Charter Communications ou da europeia Altice NV em como vão manter voluntariamente a neutralidade, é preciso recordar que, quando da Lei da Neutralidade do presidente Obama foi aprovada, os gigantes das telco nos EUA – como a Verizon, a AT&T e a própria Comcast – disseram que isso os impediria de melhorarem as suas infraestruturas. |
O problema quando se acaba com um princípio igualitário é saber então quais as regras pelas quais as coisas vão funcionar – quem vai beneficiar e quem vai ficar prejudicado.
Existem consequências em dois planos diferentes, ambos preocupantes:
No plano empresarial, a capacidade dos ISP definirem quem fica “ao sol” e quem fica “à sombra” é uma ameaça a produtores independentes de conteúdo e empresas de media de menor dimensão. Mesmo gigantes como a Google ou o Facebook voltaram a manifestar a sua discordância na antecipação de custos para manterem os conteúdos rápidos nos ISP.
Para a Netflix, a palavra mais certeira é “pânico”. A Netflix constitui sozinha uma parte muito significativa do tráfego de internet (± 37% nos EUA), e é a principal concorrência à oferta de serviços video-on-demand dos próprios ISP. Apesar do seu CEO, Reed Hastings, ter acalmado os acionistas desde que se tornou evidente uma mudança na lei, afirmando que os consumidores não vão permitir que o ISP manipulem a velocidade do seu serviço, na verdade gigante dos conteúdos on-demand é indicado como um dos grandes ameaçados com esta alteração.
No plano dos direitos civis à liberdade de informação, não é crível que exista uma intervenção direta da administração sobre conteúdos específicos, poder que está reservado ao plano judiciário. Contudo, é desconhecido ainda como será a nova regulamentação, e tendo as palavras de Donald Trump sobre a internet na memória, os americanos têm motivos para alguma apreensão.
Por ambas as razões, está em marcha um movimento cívico que levou já a que um milhão de americanos demonstrassem a sua oposição na plataforma de consulta ao público do site da FCC, movimento que foi ironicamente iniciado por um cidadão inglês, o humorista John Oliver, que usou o seu programa Last Week Tonight na HBO para sensibilizar os americanos sobre os perigos da administração Trump quebrar a Net Neutrality.
O humorista John Oliver iniciou um movimento que já levou 1 milhão de americanos a protestarem contra o fim da Net Neutrality E nós Europa?Em reação à posição americana, a Comissão Europeia acaba de vir a terreiro com um comunicado a frisar o seu compromisso com a neutralidade no tráfego de dados, relembrando a regulamentação comunitária de novembro de 2015, onde estão os princípios da Open Internet, pelos quais nenhuma entidade com responsabilidade na gestão da rede pública pode priorizar, retardar ou bloquear conteúdos sem uma decisão judicial ou sem um fundamento técnico de uma ameaça à rede que pontualmente necessite de uma restrição de tráfego. É um bom princípio: reafirmar o direito de todos os produtores de conteúdos a um tratamento igualitário por parte dos ISP. Mas mesmo sem proteção legal, dizem os especialistas que dificilmente num ambiente com 28 países e centenas de ISP regionais seja impossível a cartelização ou acordos pan-europeus com providers de conteúdos. Claro que a nível local, por exemplo em Portugal, ninguém compreenderia que a Altice fornecesse aos clientes MEO acesso rápido a sites alojados no portal Sapo, em detrimento de outros conteúdos alojados em providers independentes , ou que o videoclube da Meo fizesse streaming com várias vezes a largura de banda do Netflix. |