Ana Rocha, Advogada da CCA em 2020-4-20

OPINIÃO

Legal

Quando a realidade supera a ficção, poderá a IA ser protagonista?

Com a recente declaração de pandemia, os governos e as entidades públicas e privadas em diversos países estão a tomar medidas para conter a propagação do COVID-19 as quais, em muitos casos, envolvem o tratamento de dados pessoais, inclusivamente de dados de localização ou de carácter sensível como os dados relativos à saúde

Quando a realidade supera a ficção, poderá a IA ser protagonista?

Ana Rocha, Advogada da CCA

De um dia para o outro deixámos de poder sair de casa, o distanciamento social é a ordem em diversas partes do mundo. A economia parou e o medo entrou nas nossas casas. Preocupadas com a falta de ponderação que pode estar associada a este período excecional, com a urgência de medidas rápidas e a necessidade crítica de partilha massiva de informação e os inerentes riscos para os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, as autoridades de controlo europeias em matéria de proteção de dados têm emitido, a uma cadência intensiva, orientações e recomendações.

São muitas as questões: saber por exemplo se, em contexto de pandemia, as empresas poderão solicitar informação aos trabalhadores do seu histórico de viagens ou relativa a sintomas da doença; a partilha de informação de diagnóstico da infeção; ou quais a medidas de segurança a aplicar ao trabalho remoto; como podem ser partilhados dados de saúde partilhados com instituições de saúde e de investigação com o objetivo do combate à pandemia.

As autoridades de controlo ou a Autoridade Europeia para a​ Proteção de Dados (AEPD) têm consistentemente referido que o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) não servirá de obstáculo à tomada de medidas adequadas a combater o vírus, reforçando o seu caráter flexível, estando configurada a licitude do tratamento de dados pessoais quando o mesmo seja necessário para a monitorização de epidemias e da sua propagação.

O RGPD admite o tratamento de dados pessoais por entidades públicas no exercício das suas funções e, no âmbito laboral, quando o mesmo seja necessário para cumprimento de uma obrigação legal a que o empregador esteja sujeito (para a promoção da segurança e da saúde dos seus trabalhadores) ou, quando tal o justifique, por razões de interesse público no domínio da saúde pública.

Não obstante, na análise concreta do tratamento a realizar, é importante não esquecer que os princípios estruturais aplicáveis a qualquer tratamento de dados pessoais mantêm-se integralmente vigentes, devendo ser respeitados os princípios da licitude, da minimização, da transparência e da proporcionalidade, bem como quanto à necessidade de garantir a segurança adequada da informação. Por outro lado, sempre que os dados tenham sido devidamente anonimizados, as regras de proteção de dados não serão aplicáveis podendo permitir, por exemplo, a partilha de dados de localização.

Os desafios são únicos e sem precedentes, a nível nacional e global. Alguns exemplos são ilustrativos das potencialidades da utilização da tecnologia neste combate. A Coreia do Sul recorreu a medidas extremas, disponibilizando uma plataforma governamental baseada em Inteligência Artificial (IA) que recolhe dados pessoais dos cidadãos e dos seus movimentos, informando sobre as áreas de foco do vírus com o objetivo de providenciar, nesses locais, mais testes e a gestão de recursos médicos.

Em Singapura foi utilizada uma app, a qual, com a ligação pelo utilizador do Bluetooth no seu smartphone, permite identificar situações de proximidade com pessoas que tenham sido diagnosticadas como portadoras do Coronavírus. São, no entanto, muitas as reservas quanto à justificação em adotar algumas destas soluções, na medida em que as mesmas poderão ser excessivamente intrusivas, monitorizando em larga escala a vida dos cidadãos, com riscos para as liberdades e direitos fundamentais. 

Em Portugal, foi anunciado que a DGS irá partilhar dados anonimizados para o acesso por equipas de investigação para que, com recurso a ferramentas de IA ou investigação epidemiológica, seja possível escalar a capacidade de investigação e de inovação. A Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) anunciou a abertura das candidaturas ao concurso para projetos de I&D “AI 4 COVID-19: Ciência dos Dados e Inteligência Artificial na Administração Pública”. Até 19 de Maio está em consulta pública o “Livro Branco sobre a inteligência artificial”, no qual são apontadas as inúmeras vantagens em prosseguir uma abordagem europeia sólida para a IA, mas são também identificados os potenciais riscos para os direitos fundamentais, incluindo a proteção da privacidade e a não discriminação.

Parece inquestionável o papel que a tecnologia irá desempenhar e, em concreto, da IA na construção de soluções que ajudem a combater esta e futuras epidemias. Porém, os desafios éticos, quando em causa está o tratamento de dados pessoais, são enormes. A reflexão sobre as medidas a adotar e a sociedade que se pretende (re)construir é urgente. A IA como protagonista? Deseja-se que se apresente como um protagonista “bom” e não como um “vilão”! 

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